quarta-feira, 29 de setembro de 2010

"Besouro" não voa, só ensaia*



"Besouro", de João Daniel Tikhomiroff, é um filme que atrai seu interesse e trai sua expectativa. Neste último caso, a traição não chega a ser traumática, mas a sensação é de que o filme poderia dar mais saltos do que o próprio protagonista.


Baseado em narrativas orais sobre o capoerista negro Manoel Henrique Pereira, conhecido por Besouro, o primeiro longa-metragem do premiadíssimo diretor publicitário João Daniel segue a linha de produção de filmes, comum no Brasil dos últimos cinco anos, que tem dado certo: menos diálogo, mais ação. E no caso de "Besouro" mais ainda. Primeiro, devido ao elenco ser quase todo de atores amadores ou com pouca experiência de cinema, mesmo com preparação de Fátima Toledo, que tira leite de pedra e dá bons resultados como em "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, outro diretor egresso da Publicidade. Os atores não sustentariam o filme com mais fala e menos movimento de cena. Segundo, por ser uma história de capoeira, não se imaginaria um roteiro sem evoluções de "meia-luas" e "rabos-de-arraia".


A escolha de um mestre-de-capoeira, Ailton Carmo, para representar o "herói negro", foi um tento, por conta de sua elasticidade corporal e compleição física apropriadas para as cenas de ação. A performance gestual de Ailton é ressaltada pela coreografia aérea. O que nele tem de mudez, Irandhir Santos, o Quaderna de "Pedra do Reino" (microssérie da Rede Globo), tem de verbosidade quase histriônica, quando, durante todo o filme, obsessivamente caça Besouro para matar, por estar destruindo a fazenda de seu patrão. Sua participação garante a veia dramática e atuante da fala.


A construção do herói pelo diretor é sincera, sem a grandiloquência dos heróis gregos, mas que coincide com a proteção divina, nesse caso baiano, dos orixás. Ele mesmo é visto como um semi-deus por voar e ser invísivel aos olhos de seus perseguidores. A história tem hiatos de narratividade que compromete um tanto o produto final, mas que se salva em parte por ter sido muito bem acabado com os recursos de efeitos visuais. A trilha sonora integrada por Nação Zumbi, Naná Vasconcelos e Gilberto Gil é mais discursiva do ponto de vista de uma idealização do herói. As letras e os arranjos das músicas são como narrativas vocais do que poderia ter sido a imagem em si do filme.

É neste ponto que está a decepção pela falsa expectativa que o filme nos dá. Ao tempo que encanta nossos olhos e ouvidos, nos frustra porque, mesmo que o roteiro seja criativo na reinvenção das lendas em torno de Besouro, não avança e nem fecha certas cenas que são seminais na dramatização da tomada de consciência do personagem contra a exploração do coronel. Isto fica mais evidente nos personagens "mortais" do que no do "imortal" Besouro.

Pai Alípio (Macalé), Chico Canoa (Leno Sacramento) e Quero Quero (Anderson Santos de Jesus)dão mais veracidade a uma perfomatividade negra combativa do que Besouro, quando reagem sem uso de artifícios à subordinação social vigente no engenho de açúcar.

Sua morte pela faca de ticum, a única forma de quebrar o encanto do corpo fechado, só termina a participação de Besouro no filme. Nem seu filho pequeno, que seria a encarnação do mito do pai, dá continuidade ao ideal de luta em cuja ação Besouro poderia ser mais crível. A solução do diretor foi transformar o menino em futuro vingador da morte do capoeirsta, quando em uma das cenas mais emblemáticas, flagra em slow motion os olhos dele mirando o coronel matador. Vingança por vingança, matar por matar, não resolve o problema da exploração, ela só agudiza a tensão social.

Quem dá a mensagem no final, recuperando assim (ou tentando recuperar) o que o mito de Besouro faz circular nas rodas de capoeira e que no filme ficou comprometido pela falta de ênfase no discurso afirmativo, é o Chico Canoa, que mesmo com as pernas defeituosas, quebradas em uma reação aos capangas da fazenda, ensina o filho de Besouro os primeiros passos da capoeira e, assim, de fato a consagrar a herança simbólica do pai pela ação de uma arma de resistência escrava.

O filme constou da lista dos elegíveis para representar o Brasil na seleção de melhor filme estrageiro no Oscar 2010. O Ministério da Cultura fez bem em não ter escolhido "Besouro", mas meteu os pés pelas mãos ao indicar "Salve Geral", de Sérgio Rezende.


O importante é que o filme tem seguido como um dos favoritos do público, se tomarmos a bilheteria alta em Salvador. Por curiosidade, devido ao apelo publicitário dos efeitos visuais à la "O tigre e o dragão", de Ang Lee, ou mesmo por identificação dos baianos com a capoeira e as referências à cultura da Bahia (as locações são da Chapada Diamantina), "Besouro" vale pela redescoberta do personagem-tema e sua versão fabular. Como herói, precisaria mais um pouco de força para voar mais alto.

* Texto de autoria de Marielson Carvalho, Professor de Literatura e Cultura da Universidade do Estado da Bahia - Campus XVI. Pesquisador de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, Pós-Colonialidade, Cultura Baiana e Música Popular

Retirado do BLOG: http://marielsoncarvalho.blogspot.com/

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